A obra “Cérémonies et coutumes
religieuses de tous les peuples du monde”, publicada em Amsterdã entre 1723 e 1737
faz parte da coleção da BC e está disponível online. Confira os links em nosso catálogo.
Em seu tempo, o francês Bernard
Picart (1673-1733) era um famoso gravurista. Ele se orgulhava da sua habilidade
de capturar a essência de reconhecidos mestres europeus da pintura, tais como
Rembrandt e Rubens. Colecionadores ao redor da Europa procuravam as gravuras e
as águas-fortes – técnica de gravura a entalhe – que fazia daquelas obras. Sua
mais duradoura reputação, no entanto, é consequência de uma obra muito
diferente: os sete volumes do Cérémonies et coutumes religieuses de tous les
peuples du monde, publicado em Amsterdã entre 1723 e 1737.
As 250 pranchas de gravuras
representavam todas as religiões conhecidas dos europeus no início do século
XVIII. Quase sempre nomeados simplesmente de “Picart”, pois apenas o nome do
gravador aparecia na página de título, os volumes chamavam a atenção para a
diversidade de experiências religiosas ao redor do mundo. O trabalho levantava
questões fundamentais sobre o significado da religião e sobre o status especial
do Cristianismo.
[…]
Embora Bernard Picart nunca tenha
escrito nada sobre o programa visual para os volumes, ele claramente queria
manter o equilíbrio entre estética e precisão. Suas representações de
cerimônias religiosas precisavam ser bonitas, pois, além de as pranchas
cobrirem todas as religiões conhecidas no mundo, ele também estava lutando por
reconhecimento como um tipo de pesquisador científico. Picart tencionava desenhar
“a partir da natureza”, isto é, de modelos da vida real, e como consequência
ele carregava seu bloco de desenhos para onde quer que fosse.
[…]
Fosse escolhendo quais imagens
copiar, alterando as mesmas ou criando novas, Picart pretendia tornar deidades
e práticas estrangeiras palatáveis aos observadores europeus. Conseguiu isso ao
adicionar paisagens ou elementos arquitetônicos familiares, colocou divindades
estranhas em pedestais clássicos, excluiu cenas de grande violência desenhadas
por seus predecessores, promoveu um senso de identificação com aqueles
desenhados, e fez comparações sutis entre rituais cristãos e pagãos.
[…]
Quando consideradas como um todo,
as imagens de Picart criam a categoria “religião”. Enquanto seu texto solto às
vezes viaja pelas tangências, as imagens mantêm o foco nas cerimônias mais
comumente encontradas – rituais de nascimento, casamento e morte, e grandes
procissões – ou nas práticas mais incomuns, abrangendo os procedimentos
secretos para a eleição de papas a sacrifícios humanos no México. As imagens
transformaram a religião de uma questão revelada a um pequeno e seleto grupo de
povos de Deus (judeus, católicos e protestantes) em uma questão de práticas
culturais comparáveis. O trabalho completava um processo iniciado no século XVII,
que crescentemente via a religião como uma categoria separada no que diz
respeito aos seus próprios rituais, costumes e, normalmente, a algum tipo de
clero. Tal “segregação” da religião resultaria em uma limitação do seu status.
Bernard Picart não nasceu um
“subversivo” religioso. Filho de um bem-sucedido gravurista católico
parisiense, foi educado na Academia Real Francesa e rapidamente ganhou uma
reputação internacional por suas gravuras. Quando sua primeira esposa, uma
católica preeminente, morreu em 1708, Picart decidiu que era o momento de
emigrar. Ele vinha lendo secretamente textos calvinistas e se converteu ao
protestantismo após chegar à Holanda, no final de 1709 ou início de 1710. O
calvinismo era ilegal na França desde que Luís XIV proscrevera sua prática, em
1685.
Não está claro se Picart se
considerava um ateu, posição perigosa para se sustentar publicamente na época,
mas ele lia extensamente escritos científicos, filosóficos e religiosos. Sua
biblioteca pessoal de cerca de 2 mil títulos, coleção imensa para a época,
incluía não apenas literatura de viagem, história, polêmica religiosa e
sermonário liberal protestante, mas também Descartes, Newton, Hobbes, obras
raras de Giordano Bruno (queimadas em Roma em 1600 como heréticas) e os
escritos de Gabriel Naudé e Giulio-Cesare Vanini, filósofos libertinos do
início do século XVII .
É mais provável que se pensasse
como um panteísta – crença segundo a qual Deus está em tudo, em cada elemento
do universo – ou um deísta – que acredita na existência de Deus, mas não aceita
a religião como uma revelação divina. Ou até mesmo um crente em um tipo de
religião primitiva, original, que repousava na essência de todas as religiões
encontradas ao redor do globo. Tais crenças fariam da tolerância religiosa a
mensagem implícita e mais emblemática de Céremonies et coutumes
religieuses de tous les peuples du monde. A diversidade de crenças humanas
deveria ser estudada e celebrada, nunca esmagada em nome de uma única.
Fonte: Trechos do texto de Lynn Hunt e
Margaret Jacob com tradução de Rodrigo Elias para Revista de História da BN.