segunda-feira, 20 de julho de 2015

Cérémonies et coutumes religieuses de tous les peuples du monde

A obra “Cérémonies et coutumes religieuses de tous les peuples du monde”, publicada em Amsterdã entre 1723 e 1737 faz parte da coleção da BC e está disponível online. Confira os links em nosso catálogo.

Em seu tempo, o francês Bernard Picart (1673-1733) era um famoso gravurista. Ele se orgulhava da sua habilidade de capturar a essência de reconhecidos mestres europeus da pintura, tais como Rembrandt e Rubens. Colecionadores ao redor da Europa procuravam as gravuras e as águas-fortes – técnica de gravura a entalhe – que fazia daquelas obras. Sua mais duradoura reputação, no entanto, é consequência de uma obra muito diferente: os sete volumes do Cérémonies et coutumes religieuses de tous les peuples du monde, publicado em Amsterdã entre 1723 e 1737.

As 250 pranchas de gravuras representavam todas as religiões conhecidas dos europeus no início do século XVIII. Quase sempre nomeados simplesmente de “Picart”, pois apenas o nome do gravador aparecia na página de título, os volumes chamavam a atenção para a diversidade de experiências religiosas ao redor do mundo. O trabalho levantava questões fundamentais sobre o significado da religião e sobre o status especial do Cristianismo.

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Embora Bernard Picart nunca tenha escrito nada sobre o programa visual para os volumes, ele claramente queria manter o equilíbrio entre estética e precisão. Suas representações de cerimônias religiosas precisavam ser bonitas, pois, além de as pranchas cobrirem todas as religiões conhecidas no mundo, ele também estava lutando por reconhecimento como um tipo de pesquisador científico. Picart tencionava desenhar “a partir da natureza”, isto é, de modelos da vida real, e como consequência ele carregava seu bloco de desenhos para onde quer que fosse.

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Fosse escolhendo quais imagens copiar, alterando as mesmas ou criando novas, Picart pretendia tornar deidades e práticas estrangeiras palatáveis aos observadores europeus. Conseguiu isso ao adicionar paisagens ou elementos arquitetônicos familiares, colocou divindades estranhas em pedestais clássicos, excluiu cenas de grande violência desenhadas por seus predecessores, promoveu um senso de identificação com aqueles desenhados, e fez comparações sutis entre rituais cristãos e pagãos.

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Quando consideradas como um todo, as imagens de Picart criam a categoria “religião”. Enquanto seu texto solto às vezes viaja pelas tangências, as imagens mantêm o foco nas cerimônias mais comumente encontradas – rituais de nascimento, casamento e morte, e grandes procissões – ou nas práticas mais incomuns, abrangendo os procedimentos secretos para a eleição de papas a sacrifícios humanos no México. As imagens transformaram a religião de uma questão revelada a um pequeno e seleto grupo de povos de Deus (judeus, católicos e protestantes) em uma questão de práticas culturais comparáveis. O trabalho completava um processo iniciado no século XVII, que crescentemente via a religião como uma categoria separada no que diz respeito aos seus próprios rituais, costumes e, normalmente, a algum tipo de clero. Tal “segregação” da religião resultaria em uma limitação do seu status.

Bernard Picart não nasceu um “subversivo” religioso. Filho de um bem-sucedido gravurista católico parisiense, foi educado na Academia Real Francesa e rapidamente ganhou uma reputação internacional por suas gravuras. Quando sua primeira esposa, uma católica preeminente, morreu em 1708, Picart decidiu que era o momento de emigrar. Ele vinha lendo secretamente textos calvinistas e se converteu ao protestantismo após chegar à Holanda, no final de 1709 ou início de 1710. O calvinismo era ilegal na França desde que Luís XIV proscrevera sua prática, em 1685.

A visão de Picart sobre religião era pouco convencional. Ele ingressou em um grupo secreto chamado Cavaleiros do Júbilo, uma loja proto-maçônica que unia uma seleção cosmopolita de jornalistas e editores livre-pensadores. Um deles publicaria o mais notório manifesto do século, O Tratado dos Três Impostores, sendo os três Moisés, Jesus e Maomé.

Não está claro se Picart se considerava um ateu, posição perigosa para se sustentar publicamente na época, mas ele lia extensamente escritos científicos, filosóficos e religiosos. Sua biblioteca pessoal de cerca de 2 mil títulos, coleção imensa para a época, incluía não apenas literatura de viagem, história, polêmica religiosa e sermonário liberal protestante, mas também Descartes, Newton, Hobbes, obras raras de Giordano Bruno (queimadas em Roma em 1600 como heréticas) e os escritos de Gabriel Naudé e Giulio-Cesare Vanini, filósofos libertinos do início do século XVII .

É mais provável que se pensasse como um panteísta – crença segundo a qual Deus está em tudo, em cada elemento do universo – ou um deísta – que acredita na existência de Deus, mas não aceita a religião como uma revelação divina. Ou até mesmo um crente em um tipo de religião primitiva, original, que repousava na essência de todas as religiões encontradas ao redor do globo. Tais crenças fariam da tolerância religiosa a mensagem implícita e mais emblemática de Céremonies et coutumes religieuses de tous les peuples du monde. A diversidade de crenças humanas deveria ser estudada e celebrada, nunca esmagada em nome de uma única.


Fonte: Trechos do texto de Lynn Hunt e Margaret Jacob com tradução de Rodrigo Elias para Revista de História da BN.